quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Mais dos Sarney



10/10/2008 19:55


O grupo da Poli de 78
A Polícia Federal acusa Fernando Sarney, filho do senador José Sarney, de montar com seus amigos de faculdade um esquema de corrupção no governo. Ele nega
Rodrigo Rangel, de São Luís, e Andrei Meireles

Eles são conhecidos como o grupo da Poli de 78, uma referência à turma formada em 1978 no curso de Engenharia Civil da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). O mais famoso é Fernando Sarney, filho do ex-presidente e senador José Sarney (PMDB-AP) e empresário de sucesso no Maranhão, terra natal da família. Pela projeção e pelos relacionamentos, Fernando é considerado líder do grupo, que congrega meia dúzia de amigos. Alguns ocupam cargos estratégicos no Estado brasileiro.
Um deles, Astrogildo Quental, é diretor-financeiro da Eletrobrás, estatal que movimenta mais de R$ 6 bilhões por ano. Outro, Ulisses Assad, é diretor de engenharia da Valec, empresa vinculada ao Ministério dos Transportes que cuida das obras da Ferrovia Norte-Sul, projeto iniciado quando Sarney era presidente. Outros dois colegas da turma de 78, Gianfranco Perasso e Flávio Barbosa Lima, estão ligados aos mesmos negócios. Mais tarde, aos ex-alunos da Poli juntou-se o ex-ministro de Minas e Energia Silas Rondeau, que deixou o ministério sob suspeita de corrupção e hoje ocupa assento no Conselho de Administração da Petrobras.
Há dois anos, esse grupo passou a ser alvo de uma investigação da Polícia Federal. O trabalho acaba de ser finalizado. Para a polícia, o grupo liderado por Fernando Sarney forma uma “organização criminosa” instalada no interior da administração federal. De acordo com a investigação, o grupo manipularia licitações públicas, desviaria dinheiro de obras e manteria negócios à sombra do Estado. ÉPOCA teve acesso a documentos do inquérito. São cópias de contratos, e-mails e relatórios de conversas telefônicas sobre operações financeiras em paraísos fiscais do Caribe e na China, envolvendo recursos não declarados ao Imposto de Renda. Os documentos trazem cifras de milhões de dólares.
Revista Época
REMESSA


Cópia de uma autorização, assinada por Fernando Sarney, para transferir US$ 1 milhão para uma conta mantida num banco de Qingdao, na China. O dinheiro não teria sido declarado ao Fisco
O ex-presidente José Sarney não figura no inquérito como investigado. Nem poderia, pois uma apuração policial sobre senadores só pode ocorrer com autorização do Supremo Tribunal Federal. Mas a investigação se debruçou sobre a atividade de altos servidores públicos que estão no governo por indicação de Sarney. De acordo com a própria polícia, são eles: Assad, que, segundo a polícia, “foi indicação” de José Sarney para a diretoria da Valec, e o ex-ministro de Minas e Energia Silas Rondeau, afilhado político de Sarney. A investigação se voltou também para a influência do grupo com o sucessor de Rondeau, Edison Lobão, que conquistou o cargo numa delicada negociação entre José Sarney e o presidente Lula. De acordo com o inquérito, o grupo da Poli tem “livre trânsito” no gabinete de Lobão. A voz de Lobão aparece em gravações monitoradas pela polícia, em conversas com integrantes do grupo. São diálogos triviais, de um ministro que fala pouco ao telefone e prefere marcar encontros pessoalmente. Um de seus interlocutores mais freqüentes é Rondeau. Procurado por ÉPOCA, José Sarney, por meio de assessores, disse que não daria entrevistas.
Em 18 de agosto, a polícia pediu a prisão de Fernando Sarney. Nove dias depois, os procuradores Thayná Freire e Marcílio Nunes deram parecer favorável ao pedido. Em 10 de setembro, os advogados de Fernando Sarney entraram no Superior Tribunal de Justiça (STJ) com um pedido de habeas corpus preventivo. O salvo-conduto que obtiveram é extensivo a seus sócios e advogados. O juiz substituto Neian Milhomem da Cruz, relator do inquérito na primeira instância da Justiça Federal do Maranhão, negou o pedido de prisão de Fernando Sarney. O juiz é o mesmo que, há meses, vinha atendendo aos pedidos da polícia e do MP para interceptar telefones e quebrar os sigilos bancário e fiscal dos investigados. Tão logo negou a prisão, tirou dois meses de férias. O inquérito prossegue e o Ministério Público pretende apresentar a denúncia por corrupção, tráfico de influência e evasão de divisas.
Fernando Sarney, o suposto líder do grupo, negou a ÉPOCA ser chefe de uma organização criminosa, como afirma a polícia. Ele diz que as operações financeiras citadas no inquérito fazem parte de sua rotina comum de empresário, que administra um dos grandes grupos de comunicação do Nordeste brasileiro, com uma emissora de TV, um jornal e cinco emissoras de rádio. Também reclama de ter sido investigado e grampeado durante dois anos, sem “nunca saber do que era acusado”. Ele diz que só teve acesso ao inquérito nos últimos dias. “Mesmo assim, ainda não conheço tudo o que está ali dentro”, afirma. “Sei que estão investigando desvio de dinheiro público, e não mexo com o setor público. Sou um empresário privado”.


fotomontagem sobre fotos de Celso Avila/BGPRESS, Roberto Stuckert  Filho/Ag. O Globo, divulgação, Ruy Baron/Valor/Folha Imagem
SOB SUSPEITA

Fernando Sarney (foto maior), Silas Rondeau, Ulisses Assad e Astrogildo Quental (de cima para baixo, no sentido horário). Eles são acusados pela PF de integrar uma “organização criminosa”
ÉPOCA também procurou Astrogildo Quental, Ulisses Assad, o ex-ministro Silas Rondeau e o ministro Edison Lobão. “Não falo, por orientação de meu advogado. Mas não fiz nada de errado”, disse Astrogildo. Assad reconheceu manter as amizades desde os tempos da Poli e afirmou desconhecer as denúncias de subcontratações da Valec, onde é diretor. “Não tenho conhecimento disso”, disse. O ex-ministro Silas Rondeau não foi localizado. A assessoria do ministro Lobão informou que ele estava em Lisboa e não respondeu aos pedidos de entrevista.
Fernando Sarney deu duas entrevistas a ÉPOCA nas duas últimas semanas. Questionado sobre contas que, segundo o inquérito, mantém no exterior, respondeu: “Não sei do que você está falando”. Informado de que a polícia dispõe de um documento de depósito no exterior, com sua assinatura, disse: “Não sei o que é isso”. Sobre seus antigos colegas da Poli, que hoje ocupam postos de confiança no governo, afirmou que continuam amigos. “Mas não temos negócios juntos. Não temos sociedades formais”, disse. ÉPOCA perguntou se tinham sociedades informais. Ele repetiu que não tinham “sociedades formais”.
A Polícia Federal descreve um esquema de desvio de recursos públicos em que não aparecem vínculos formais entre as empresas de Fernando Sarney e aqueles órgãos em que há sinal da atividade do grupo de 78. O inquérito aponta para operações que envolvem empresas de fachada. Muitas delas em nome de Gianfranco Perasso e Flávio Lima, os integrantes menos conhecidos do grupo da Poli. Essas empresas, diz a polícia, têm um patrimônio declarado de milhões de reais, mas seus proprietários formais vivem endividados no cheque especial. A polícia afirma que Gianfranco e Flávio são testas-de-ferro de Fernando Sarney.
A base das investigações sobre o grupo está em grampos telefônicos e mensagens por e-mail, monitoradas com autorização da Justiça. As evidências reunidas dessa forma permitem questionar os argumentos de Fernando Sarney. Diversos diálogos mostram o empresário em intensa atividade para fazer nomeações e dirigir negócios. Altos funcionários de empresas estatais ligam para prestar contas. Os grampos ainda apontam para evidências da influência do grupo no gabinete do ministro Lobão. “Diversas são as situações em que Fernando determina pagamentos e disciplina como deve ser o modus operandi do grupo”, diz o relatório da investigação.
Um caso envolve a nomeação de Ronaldo Braga, homem de confiança do grupo, para ocupar a diretoria da Manaus Energia, subsidiária da Eletrobrás. “Nós conseguimos colocar o diretor-comercial, que eu acho que é o principal cargo para os nossos pleitos, né?”, afirma Gianfranco. Horas depois, o próprio Braga telefona a Fernando, a quem agradece a nomeação.
Em outra conversa, em 21 de maio, Astrogildo Quental, o diretor da Eletrobrás, conta a Fernando Sarney que “fechou a diretoria com o Lobão” naquela manhã. “Foi uma conquista boa”, afirmou. Em muitas conversas, os personagens do grupo se referem a Lobão como “Big Wolf”. Num e-mail para Fernando Sarney, um empresário sugere pedir ajuda a “Big Wolf” para nomear um amigo no governo. “Uma cobrança sua a ele (Lobão) perguntando como tá o assunto vai ajudar muito”, diz a mensagem. A influência, de acordo com a polícia, não se restringe ao gabinete de Lobão. Chega à Petrobras. “Nosso projeto será apresentado ao presidente da Petrobras hoje”, diz Gianfranco a Fernando num telefonema em abril.
Em grampo, integrantes do grupo discutem a divisão de
contratos da estatal Valec, responsável pela Ferrovia Norte-Sul
A transcrição de uma das conversas grampeadas pela PF revela detalhes da partilha do dinheiro e ilustra, segundo os investigadores, a relação entre Fernando Sarney e seus amigos: “Fernando fala para Gianfranco que é para ele fazer o que eles combinaram (...). Fernando diz que a outra coisa é o seguinte: diz que ele vai entregar lá para o nosso amigo e Gian vai subtrair 1/6. Gian confirma 1/6. Fernando diz que do 1/6 ele vai dar 20% para Tetê (Teresa Sarney, mulher de Fernando), que está em São Paulo. Gian confirma. Fernando diz que o restante ele divide com Flavinho”. Há referências também a pagamentos a Assad, da Valec, e a Astrogildo Quental, a quem Fernando Sarney se refere como “Astro” ou “Astrinho”. De acordo com o inquérito, durante a investigação Assad comprou uma fazenda de R$ 1,6 milhão em nome de terceiros.


A polícia também capturou contratos de consultoria de empresas mantidas por um sobrinho de Silas Rondeau. Segundo o inquérito, por meio dessas empresas Rondeau receberia remunerações que variam entre R$ 10 mil e R$ 15 mil por mês, conforme o cliente. A minuta de um dos contratos informa que um deles, com a construtora Strata e a empresa Energ Power Ltda., prevê o pagamento de R$ 1,4 milhão para a PBL, registrada em nome de Gianfranco e Flávio Barbosa Lima. O serviço, nesse caso, seria a consultoria para a “venda das ações ordinárias detidas pelas contratantes, correspondente a 25% do capital social da Energética Corumbá III, sendo o cliente final a Eletronorte”. A Eletronorte é uma das empresas públicas do sistema Eletrobrás, onde, de acordo com as investigações, o grupo exerceria influência.
“Pode-se observar claramente, em conjugação com os diálogos monitorados, que o grupo está utilizando o mesmo artifício dos contratos de ‘consultoria’ já utilizados na área de obras de engenharia, para as atividades na área de energia elétrica, mascarando, dessa forma, valores recebidos de forma escusa”, escreveram os delegados Márcio Adriano Anselmo e Thiago Monjardim Santos no inquérito.
Roberto Stuckert  Filho
NO GOVERNO

A PF diz ter evidências da influência do grupo da Poli no Ministério de Minas e Energia, comandado por Edison Lobão (acima)
Outra ponta do suposto esquema, segundo a polícia, envolve a Valec, onde atua Assad. Ali, diz a PF, licitações seriam dirigidas a empresas de boa reputação e com capacidade de honrar os contratos – sob a condição de que o negócio fosse terceirizado a uma das firmas de fachada do grupo da Poli. Dessa forma, parte do dinheiro iria para contas do grupo. O funcionamento do esquema montado na Valec é ilustrado pelo contrato 013/2006, de construção de um trecho de 105 quilômetros da Ferrovia Norte-Sul, no Estado de Goiás. A vencedora foi a Constran S.A., sediada em São Paulo, que já foi uma das maiores empreiteiras do país. A Constran S.A. firmou um “termo de acordo operacional” com outras duas empresas: a construtora EIT e a desconhecida Lupama. O valor do contrato é de R$ 245 milhões. Pelo termo, EIT e Lupama, cada uma, ficaram com 16,65% desse valor. A Lupama, cujo endereço é uma modesta casa em Imperatriz, no Maranhão, também está registrada em nome de Gianfranco e Flávio. Nesse trecho da Norte-Sul, o grupo teria acertado receber R$ 45 milhões por meio da Lupama.
Numa conversa gravada, Gianfranco descreve o funcionamento do esquema. Pede ajuda ao interlocutor para encontrar um sócio para um novo contrato na Valec. “Não tenho condições materiais para entrar (no negócio). Você me falou que tinha o pessoal lá de Minas, que pode tocar o negócio, e a gente entra (de) sócio dele, quer dizer, a gente aparece (como) sócio, só que ele se encarrega de fazer a coisa acontecer. Obviamente, tem os deságios de subempreita, né?”, diz Gianfranco. Em seguida, a explicação sobre o que seriam os tais deságios de subempreita: “Eu tenho o negócio, e aí... faríamos um ‘rachid’ no processo, entendeu?”.
Os depósitos e as contas no exterior ocupam uma parcela importante da investigação. Entre os documentos, consta a cópia de uma autorização, assinada por Fernando Sarney, para transferir US$ 1 milhão para uma conta num banco de Qingdao, na China. Nas mensagens, o grupo faz referência ainda a pagamentos feitos a um escritório do Panamá especializado em gerenciar empresas em paraísos fiscais. “Apresenta-se, portanto, um indício veemente da constituição de empresas no exterior, possivelmente offshore”, diz o relatório da polícia. Em outro e-mail, Gianfranco informa a um funcionário do banco Credit Suisse em Nassau, nas Bahamas: “Encaminho o seguinte e-mail onde meu correspondente afirma que não houve o depósito. Como sugestão, você não poderia estornar e enviar novamente?”, diz ele. O funcionário responde: “Estou solicitando o retorno dos fundos imediatamente”.
Em 4 de julho, é Fernando Sarney quem conversa com Gianfranco sobre o que, segundo a polícia, seriam transações com dinheiro mantido no exterior. Dá a entender que precisa levantar o que seria “grande quantidade de dinheiro para pagamento a colaboradores”. E faz referência a “dois americanos”. Para a PF, seriam US$ 2 milhões. “Dois inteiros, né?”, pergunta Gianfranco. “É algo em torno. Vou definir aqui, e a gente veria exatamente como seria feito, tá?”, responde Fernando.
A PF e o Ministério Público estão convencidos de que, durante a investigação, vazamentos beneficiaram o grupo sob suspeita. Em 17 de abril, uma conversa de Fernando Sarney com o pai sugere que a família recebera notícias sobre o inquérito em andamento – embora fosse uma investigação sigilosa. De acordo com a polícia, conversas gravadas sugerem ainda que, no dia seguinte ao parecer favorável dos procuradores Thayná Freire e Marcílio Nunes à prisão de Fernando, ele já sabia o que estava acontecendo. Num dos diálogos, o senador Sarney chama Fernando a Brasília, com urgência. Depois de chegar, Fernando ligou para a secretária, no Maranhão, para determinar que ela limpasse as gavetas do escritório. A essa altura, para a polícia, ele já saberia do risco iminente de uma operação de busca e apreensão. Fernando passa a pedir a interlocutores que o procurem em telefones seguros. Pede à secretária que localize Flávio. Fala também com Gianfranco. Pede para ele “permanecer tranqüilo, sem se apavorar e sem fazer alarde”.
Os grampos revelam, segundo a PF, o cuidado do grupo em conversas telefônicas. “Compra um pré-pago, põe em nome da empregada. Não fala nada. Cuidado”, diz Fernando numa conversa com seu motorista, Marco Bogéa. De acordo com a polícia, Bogéa seria um dos responsáveis por transportar dinheiro do esquema. Assalariado de uma empresa que presta serviços ao Senado Federal, em 19 de julho Bogéa viajou de Brasília para São Paulo, supostamente por ordem de Fernando e de Astrogildo, para levar uma mala.
As escutas mostram que, ao perceber que é vigiado, Bogéa aciona Fernando. De imediato, Fernando telefona para Astrogildo: “Aborta tudo, tá?”. O passo seguinte foi descobrir o motivo da vigilância dos policiais. Para isso, Fernando contou com a ajuda do policial federal Aluízio Guimarães Mendes Filho. Aluízio trabalha há anos para o senador José Sarney. Ele integra a cota de funcionários a que ex-presidentes da República têm direito. A pedido de Fernando, Aluízio conseguiu descobrir a razão da vigilância e informou em poucas horas: “É uma solicitação da diretoria-geral de investigação de crimes financeiros”.
Em conversas reservadas, alguns dos envolvidos na apuração afirmaram ter sofrido pressões. A procuradora Thayná Freire foi chamada a Brasília para uma conversa com o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza. De acordo com informações obtidas por ÉPOCA, Souza teria orientado Thayná a levar com cautela a investigação, por envolver o filho de um ex-presidente. Ela chegou a se queixar da atitude do chefe com colegas. Souza não quis comentar o assunto. Thayná também não.

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